Mikhail Kaufman no filme "UM HOMEM COM UMA CÂMERA"
Como pode um filme de quase 100 anos atrás continuar tão moderno? Esse filme é "Um Homem com Uma Câmera" (União Soviética, 1929), de Dziga Vertov, um exemplo de originalidade cinematográfica até hoje reverenciado. Sua sinopse é simples: "Um homem viaja pela cidade com uma câmera pendurada no ombro, documentando a vida urbana com uma invenção deslumbrante". Mas não se deixe levar pela narrativa aparentemente linear e enxuta. O que você vai ver é, na verdade, uma experiência sensorial que causou enorme revolução em sua época, um filme que se destacou por apresentar todos os tipos de técnicas de câmera possíveis ao público. Alguns deles incluem exposição dupla, câmera acelerada, câmera lenta, quadros congelados, telas divididas, close-ups extremos, movimentos invertidas e animação em stop motion. "Um Homem com Uma Câmera", disponível no streaming À La Carte, é uma obra-prima que cinéfilo nenhum pode deixar de conferir. Nas palavras do crítico Lucas Tameirão, “o filme de Vertov, portanto, segue sendo uma obra atemporal e, acima de tudo, obrigatória”. Leia abaixo o texto completo, publicado na Revista Cineplot.
Um homem com uma câmera
O entusiasmo pela realidade cinematográfica
Por Lucas Tameirão
Cena do filme "UM HOMEM COM UMA CÂMERA"
Das muitas lições que podemos tirar daquela clássica história dos primeiros espectadores de A chegada do trem à estação, que se assustaram, achando que seriam atropelados e esmagados pela locomotiva que se aproximava gradativamente do enquadramento feito pelos irmãos Lumière (lições estas que, diga-se de passagem, ainda irei explorar mais em textos futuros), uma bem interessante é a seguinte: o cinema é capaz de criar as suas próprias realidades. Esta é, com efeito, a particularidade do seu fenômeno estético.
Explico: quando esses primeiros espectadores se depararam com a filmagem dos irmãos Lumière, eles não racionalizaram que estavam diante de uma ilusão de ótica produzida pela projeção de uma certa quantidade de fotogramas a uma certa velocidade. Por outro lado, eles reagiram instintivamente, como se a locomotiva de fato estivesse lá.
Ou seja, as suas percepções não lhes comunicaram que estavam vendo a projeção de um registro de um fato passado, mas que estavam experimentando a própria realidade. Daí que, para além da ilusão de ótica da imagem em movimento, objetivamente observável, o cinema produz, também, uma ilusão subjetiva de realidade. Uma ilusão que se experimenta ao se deixar ser estimulado sensitivamente pela imagem em movimento – uma ilusão, isto é, que se concretiza a partir de um contato estético.
Então, os primeiros espectadores de A chegada do trem à estação não viram a filmagem de um trem se aproximando em direção a câmera que o enquadrava. Eles perceberam, efetivamente, um trem: na medida em que as suas consciências acreditaram estar diante de uma manifestação da realidade, o que eles viram foi uma locomotiva se aproximando de onde eles estavam, lentamente surgindo do fundo do plano e crescendo imperiosamente, sem mostrar nenhum sinal claro de que ia frear…, e que eles estavam bem na frente.
Desde a sua forma mais primitiva e sem nenhuma pretensão artística, portanto, o cinema já tinha o poder de fazer os seus espectadores acreditarem que estavam diante de um fato da realidade. Já tinha, em outras palavras, o poder de enfeitiçá-los com seu fenômeno e, com efeito, atraí-los para as suas realidades – as realidades cinematográficas. Logo, a potência artística do cinema sempre esteve ali, e tudo o que faltava era um gênio criativo para apreendê-la e explorá-la; pegar o cinema, em outras palavras, e desvelá-lo em suas características estéticas básicas para, assim, apresentar ao mundo o seu potencial como forma de arte.
E é aí que entra Um homem com uma câmera, um filme que, diferentemente da filmagem dos irmãos Lumière, de fato possui uma intenção estética: a de explorar o tipo de experiência que pode ser criada a partir da manipulação do fenômeno da imagem cinematográfica. Dziga Vertov, aqui, se propõe a incorporar o gênio criativo, e o resultado é um experimento que se deslumbra e se entusiasma com as possibilidades de criação da realidade cinematográfica.
Cena do filme "UM HOMEM COM UMA CÂMERA"
Isso fica claro desde o início, quando o filme, para a consideração do espectador (um espectador que, diga-se de passagem, muito provavelmente estava acostumado com o cinema como um meio para se contar histórias de maneira mais ilustrativa, e não como um fim em si – isto é, uma forma de arte para ser contemplada por si mesma), clarifica que se trata, antes de tudo, de um experimento, um ensaio sobre a técnica audiovisual e as possibilidades de experiência advindas da manipulação do seu fenômeno.
Um filme, em outras palavras, que funciona a partir do próprio cinema, sem o auxílio das outras artes (“um filme sem história e sem teatro”, como nos é dito nas cartelas de texto iniciais, as únicas de todo o longa). Em que a experiência resultante, isto é, se concebe a partir daquilo que é único da técnica audiovisual, de uma articulação cinematográfica por excelência.
Assim, Um homem com uma câmera nos mostra que tais técnicas, para o artista que as manipula, o cineasta, são equivalentes às tintas e o pincel para o pintor, as palavras e as construções fraseais para o escritor, a performance e a entonação da voz para o ator. Cada uma dessas artes opera, antes de tudo, a partir dos fenômenos estéticos particulares que brotam de suas ferramentas expressivas essenciais; cada qual dessas formas artísticas, em outras palavras, possui aquilo que a torna única baseado, antes de tudo, na forma em como ela se manifesta à consciência do apreciador de arte – no tipo de experiência estética que ela provê, isto é.
Então, no caso do cinema, quais seriam essas ferramentas expressivas? Quais seriam, isto é, as formas de expressão que singularizam o cinema como arte, que o diferencia das demais expressões artísticas e, com efeito, purga-o de sua dependência expressiva dessas mesmas outras expressões, permite que ele integre o panteão das belas-artes ao lado das diferentes formas?
Bem, Um homem com uma câmera nos indica que as ferramentas de criação artística do cinema, basicamente, são três: a própria imagem em movimento (a ilusão de ótica que, com efeito, cria uma ilusão de realidade – o que, por sua vez, efetivamente permite a criação de realidades paralelas), a associação entre essas imagens, por meio da montagem (esta que altera a percepção temporal do espectador, a partir da manipulação do ritmo da imagem e, também, produz significados a partir da associação de uma imagem com a outra) e o som (que produz um adorno final à experiência, concretiza a imersão no universo particular do filme).
E qual é o resultado da manipulação dessas três técnicas em Um homem com uma câmera? Que tipo de experiência, em outras palavras, resulta da abordagem de Dziga Vertov? Bem, no caso desse filme ensaio, um profundo entusiasmo para com as possibilidades de experiência estética que podem surgir da articulação cinematográfica – um entusiasmo, em outras palavras, com as possibilidades da própria realidade cinematográfica.
Assim, a possibilidade de registro do movimento da realidade, para Vertov, é muito mais do que uma invenção técnica: quando o filme começa a ser projetado, lá nas primeiras cenas do filme, a possibilidade do cinema é encarada menos como uma novidade e mais como um milagre propriamente dito. Um milagre técnico que é, em si, uma abertura para uma nova realidade, para um novo universo, um verdadeiro espetáculo de luz e som cheio de novas e entusiasmantes possibilidades.
E a realidade criada por Vertov se espanta e se deslumbra com essa nova forma de se perceber e experimentar uma experiência estética. Se, em A chegada do trem à estação, a locomotiva dos irmãos Lumière causa uma apreensão crescente, de modo que atinge o seu ápice quando assusta os seus espectadores ao se aproximar demais do enquadramento, em Um homem com uma câmera, as locomotivas de Vertov são completamente arrebatadoras: assustam na velocidade do seu movimento e desnorteiam o olho da câmera, que se deslumbra com toda essa nova forma de experiência.
Cena do filme "UM HOMEM COM UMA CÂMERA"
Assim é o olhar de Um homem com uma câmera: deslumbrado, fascinado, entusiasmado. É um filme que se anima com a simples possibilidade de poder captar elementos do cotidiano e uni-los numa única trama cinematográfica, e essa animação é particularmente contagiante. Nesse sentido, Um homem com uma câmera é o tipo de experiência que nos embarca numa jornada sensorial, nos incute o mesmo sentimento de fascínio que nutre pelas suas próprias características expressivas, e como tudo, pela ótica dessa experiência entusiasmada, ganha um novo e mais animado sentido.
“Animado” não apenas no sentido literal de euforia, de empolgação, mas também no sentido de produzir uma certa vida àquilo que se filma – e, a partir disso, produzir significados subjetivos apenas pela possibilidade de movimento da imagem. Da mesma forma, afinal, com que a locomotiva dos irmãos Lumière, ao ser motivo de susto para os seus primeiros espectadores, tornou-se não apenas uma locomotiva, mas efetivamente adotou a personalidade de uma coisa assustadora, que cresce no fundo do enquadramento e ameaça atropelar quem quer que esteja na frente.
Os melhores exemplos disso são dois. Primeiro, as cadeiras do cinema, nas cenas iniciais, logo antes de os espectadores dos experimentos de Vertov se sentarem para aproveitarem o espetáculo experimental: do uso criativo de stop-motion, este que parte da própria imagem em movimento, as cadeiras tornam-se não mais apenas “cadeiras”, mas seres inexplicavelmente vivos que, com vigorosa empolgação, nos convidam a sentar-nos na sala de cinema, esse espaço mágico em que uma realidade paralela toma forma diante dos nossos olhos.
E, em segundo lugar (mas não menos criativo, impressionante e significativo), a câmera no tripé que possui vida própria, que acontece mais para o final do filme. Uma vez mais, a ilusão de ótica proporcionada pelo cinema produzindo significados subjetivos à percepção do espectador: ao presenciarmos a câmera saindo sozinha do seu estojo, se acoplando no tripé e usando-o como as suas pernas para correr em direção a algo de interessante para se observar (e tudo, aos inéditos olhos da câmera, fica interessante), somos ao mesmo tempo tomados pelo espanto de ver o objeto inanimado tomando vida e, com efeito, subjetivamente percebemos uma entusiasmada e curiosa criaturinha, como uma criança que se deslumbra com o universo de possibilidades e descobertas que se estende à sua frente.
(Sobre esses dois momentos, diga-se de passagem, é interessante mencionar que acontecem em cenas que Vertov documenta espectadores reais apreciando e reagindo aos seus experimentos. Uma evidência metalinguística dos próprios artifícios expressivos do cinema que, por sua vez, reforça os seus mesmos efeitos, na medida em que integra esses momentos no todo da lógica estética do filme. Gênio, gênio!!)
E o mais interessante é que esse efeito continua bastante efetivo, mesmo hoje em dia, há mais de 90 anos do lançamento do filme-ensaio. Eu mesmo, por exemplo, não pude deixar de sorrir ao ver os vários “personagens” que compõem o eufórico cotidiano que serve de palco ao filme (pessoas aleatórias eternizadas pelo verniz cinematográfico), de me impressionar com a magnitude industrial do dia a dia soviético e de, ao mesmo tempo, me entusiasmar com ele, batendo o pé ao som da animada trilha sonora, que emoldura toda a euforia rítmica da experiência.
Cena do filme "UM HOMEM COM UMA CÂMERA"
Vem à mente, por exemplo, um maravilhoso momento em que a câmera de Vertov nos põe no topo de um trem em movimento. O compasso da fumaça que sai da chaminé da locomotiva é integrado ao ritmo da trilha sonora, de modo que um simples e corriqueiro acontecimento como a passagem de um trem, pelo olhar de Vertov – ou, melhor dizendo, na realidade de Vertov – se torna bastante inspirador, mais um motivo para a euforia.
O tipo de coisa mais natural para se fazer com um cinematógrafo: capturar o movimento alheio.
Ou quando Vertov filma os carros da rua em pleno e veloz movimento, bem como os bondinhos, as carroças e demais trens. (Só de pensar que ele próprio arriscou a pele para filmar esses excertos é impressionante – e, quando ele nos mostra seus cinegrafistas fazendo, exatamente, isto, uma vez mais filme aplica um expressivo efeito metalinguístico.) O tipo de coisa mais natural para se fazer com um cinematógrafo: capturar o movimento alheio. E, quando isso é feito por um gênio criativo tão entusiasmado com as possibilidades desse instrumento, o resultado irradia empolgação.
Em suma, me deixei levar pela euforia e pelo entusiasmo gerais que Um homem com uma câmera, quase irresistivelmente produzem no seu espectador. É, nesse sentido, um filme sinfônico: em outras palavras, o equivalente cinematográfico de apreciar uma canção com o único intuito de despertar euforia no seu ouvinte (no meu caso, me lembrou a experiência de um álbum do Daft Punk, como o Random Access Memories; fica aí a recomendação, por sinal – :D): o tipo de música que usa da experimentação estética com o som para capturar o ouvinte na intensidade deleitante do seu fluxo emocional.
Precisamente assim é a experiência de Um homem com uma câmera, com a adição de que o fluxo emocional produzido pela estética cinematográfica, para além do seu deleite sensorial mais imediato, nos permite a intuição imediata de significados a partir daquilo que estamos percebendo. Isso acontece porque, diferentemente da música, a matéria prima do cinema (digamos, a sua textura) é a própria realidade, e, nessa realidade, temos a possibilidade de encontrar verdades particulares, com base nas associações instintivas que fazemos ao nos depararmos com aquilo que estamos percebendo.
Daí que, como disse anteriormente, o “verniz cinematográfico” de Vertov eterniza um cotidiano aleatório numa lógica sensorial que produz sentido a partir da sua lógica experiencial, estética. Logo, os “personagens” deixam de ser, meramente, aleatórios, para se tornarem indutores de significado – estes que se encontram não apenas nas imagens em movimento em si, mas na associação entre essas imagens, por meio da montagem.
Desse modo, Um homem com uma câmera também é, literalmente, uma cápsula do tempo, que consegue eternizar os momentos que captura não apenas por o que de particularmente especial que eles contém em si mesmos, mas pelos significados que eles produzem quando integrados no todo da experiência do filme-ensaio. Eis aí, por sinal, uma importante lição sobre montagem cinematográfica: é ela, no fim das contas, a principal responsável pela produção de sentido num filme, seja esse sentido de uma ordem mais conceitual ou, também, mais prática, no que se tem à continuidade da imagem.
Essas intuições de significado a partir da lógica emocional são uma constante em Um homem com uma câmera: são eles, a bem da verdade, que nos guiam pela experiência, nos indicam o que sentir e, a partir disso, caso faça sentido dentro da lógica daquilo que nos está sendo mostrado, quais significados intuiremos. E tudo isso, no fim e ao cabo, produz personalidades particulares àquilo que nos é apresentado como uma ilusão de realidade. Em última análise, o cinema como criador de sentido e profundidade a momentos, outrora, fortuitos, talvez até desinteressantes se não pela ótica cinematográfica.
Me chamou bastante a atenção, por exemplo, um momento em que a imagem de um carro em movimento congela, e a trilha sonora, que antes estava mais vibrante e enérgica, torna-se um tanto sombria. Então, o filme nos mostra alguns stills de crianças, uma com uma expressão de espanto no rosto e outra cujo sorriso, devido ao súbito clima macabro assumido pelo filme, soa até macabra. Um breve momento que, apenas pelo ritmo das imagens em consonância com si mesmas e adornadas pela trilha sonora, produzem esse sentimento em particular.
Cartaz do filme "UM HOMEM COM UMA CÂMERA"
É quase como, nesse momento, se o filme tivesse se dado um momento para se sentir assustado, como uma criancinha, diante dessa realidade que se estende a partir do fenômeno do cinema. Que realidade é essa, que movimento é esse, e para onde ele está nos levando? Que perigos ela pode esconder? De que maneiras ela pode capturar o mal que há no mundo? Essas, é claro, são perguntas que os cineastas posteriores a Vertov, até os dias de hoje, ainda buscam responder (ou, se não responder propriamente, ao menos explorar).
E o interessante é quando essas crianças são retomadas mais para a frente, num contexto estético completamente diferente e, agora, situados de maneira mais completa e compreensível. São as mesmas imagens, os mesmos personagens, mas inseridos num ritmo e numa atmosférica eufórica completamente diferente, além de que somos evidenciados a o que eles estavam reagindo (que era um mágico de rua). Uma simples mudança, mas que produz impressões – e, por conseguinte, significados – completamente diferentes.
Nessa retomada, o espanto do rapaz não é motivado por medo, por algo possivelmente horrível que se ergue diante dele, mas por estupor e admiração aos truques do mágico de rua, e a menina, que antes parecia um serzinho maligno, agora, reage ao espetáculo da maneira mais doce que uma criança o pode fazer. Uma simples mudança que, no entanto, faz toda a diferença.
O que nos leva ao nosso segundo exemplo: a cena em que um casal se divorcia. Eis, aqui, um clássico exemplo do efeito Kuleshov em ação: os significados que tomam forma nas nossas mentes advêm, antes de tudo, da maneira específica com que certas imagens estão associadas, numa lógica de montagem particular que une as imagens (ou, melhor dizendo, os planos) em um único significado que é transmitido sensorialmente, isto é, por meio da experiência estética do cinema.
A cena em questão se desenrola da seguinte maneira: primeiro, vemos o casal divorciado. Pela expressão consternada nos seus rostos (que entra em contraste com a cena que havíamos visto imediatamente antes, que é a de um casal feliz que havia acabado de se casar), logo sabemos que há algo de errado. Então, temos um close do documento que oficializa o divórcio, e, aí, a consternação faz sentido: o casal apresentado no plano anterior está se divorciando. Na sequência, temos um plano fechado na mulher, e vemos a sua tristeza e o seu desamino emplastados em seu rosto, o que nos causa comoção.
Desse modo, a cena nos faz intuir os seus significados específicos a partir da associação específica dessas imagens (no caso, entendermos que o casal está se divorciando, o que nos faz imediatamente sentirmos pena e piedade por eles), conforme a nossa consciência acredita estar diante de uma manifestação espontânea da realidade (o fenômeno estético do cinema). Em outras palavras, o que literalmente vemos é uma sequência de imagens únicas, associadas a uma certa ordem; por outro lado, percebemos um casal se divorciando, como se este evento estivesse acontecendo bem diante de nós.
Eis o cinema, e eis a sua ilusão de realidade: a partir do seu fenômeno estético, a experiência cinematográfica pode produzir significados que nos são comunicados por meio da própria matéria estética do cinema. Uma vez identificadas as suas características fenomenológicas e, então, as possibilidades da sua manipulação ao conceber o tipo experiência que produz significados sensorialmente – por meio de uma percepção estética por excelência, isto é –, o cinema pode, enfim, se emancipar como forma de arte.
E isso, ademais, nos clarifica um pouco mais sobre o papel criador daquele que manipula esse fenômeno do cinema e, com efeito, exerce grande influência na realidade que surge de tal manipulação. Afinal, tendo sido Vertov o idealizador do projeto de Um homem com uma câmera, e tendo sido ele próprio afeito aos movimentos artísticos que se fascinavam com o movimento, a velocidade e os avanços tecnológicos, como o futurismo, não é insensato de se pensar que muito desse entusiasmo natural do cineasta russo é o que se percebe nessa atmosfera entusiasmada da realidade do seu filme.
Tamanho entusiasmo este que resulta num intenso ímpeto criativo que, como eu espero ter deixado claro aqui, até hoje em muito nos ensina sobre cinema. Especialmente, no caso, sobre as possibilidades de expressão da forma cinematográfica – forma esta que surge de uma tecnologia particular que, fortuitamente, possui também o seu fenômeno de ordem subjetiva. Em outras palavras, o cinema pode ser arte, sempre pôde: o que faltava mesmo era alguém que trouxesse esse potencial à sua superfície sensitiva de uma vez por todas.
Assim, Um homem com uma câmera não é, exatamente, o filme a que se assistiria pelos motivos convencionais (aliás, é precisamente a antítese disso), mas é um filme a que se assiste tanto para se aprender sobre formas especificamente cinematográficas de expressão, quanto para se aproveitar uma experiência cujo grande atrativo é, justamente, ser cinema, no sentido mais puro da palavra; isto é, entender a atitude a se tomar perante a uma arte cujo fenômeno estético estimula os olhos, os ouvidos e, a partir disso, nos apresenta a uma nova realidade. O filme de Vertov, portanto, segue sendo uma obra atemporal e, acima de tudo, obrigatória.