Cena do filme "O Dia Depois"
Ela é linda, carismática, talentosa. Ela é Kim Min-hee, atriz sul-coreana admirada internacionalmente, musa absoluta do diretor Hong Sang-soo. Juntos, eles já trabalharam em diversos filmes aclamados e premiados, entre eles "Na Praia à Noite Sozinha", que a levou a ser a primeira atriz coreana a ganhar o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Berlim. Mas o destaque aqui vai para "O Dia Depois" (2017), mais uma feliz parceria dela com Hong Sang-soo, longa que concorreu À Palma de Ouro no Festival de Cannes 2017 e está disponível no streaming À La Carte. O filme acompanha o terrível equívoco cometido por uma mulher que confunde a nova funcionária do marido com a ex-amante dele, após encontrar um bilhete de amor no bolso do homem. Segundo Inácio Araujo, em sua crítica publicada na Folha de S. Paulo, "'O Dia Depois' é filme impecável do diretor Hong Sang-soo". Leia abaixo o maravilhoso texto de Inácio na íntegra.
'O Dia Depois' é filme impecável do diretor Hong Sang-soo
Longa dialogo com Yasujiro Ozu, mas com suas próprias imagens da vida
Por Inácio Araújo
Cena do filme "O Dia Depois"
Certa manhã, bem cedo, um homem, Bongwan, toma café. Sua mulher entra, senta do outro lado da mesa, e começa a interpelá-lo. Por que sair tão cedo? Por que está emagrecendo? Por que mal come? Está namorando alguém?
Bongwan hesita, nega, esquiva-se. Toda a conversa acontece em um único plano: podemos observar os dois, suas reações, silêncios. A força da cena vem dos tempos, da permanência da câmera, do diálogo, dos atores e seus gestos. Bastaria apenas isso para notar que Hong Sang-soo é um cineasta muito especial.
Pouco depois, Bongwan recebe em sua editora a bela jovem Areum, sua nova assistente. Ele é também um célebre crítico literário. Eles almoçam juntos. Areum pergunta-lhe por que vive. Diante de Areum e suas questões Bongwan sente-se tão desarmado quanto diante da mulher.
Bongwan diz a horas tantas que as palavras não conseguem traduzir a realidade. Areum lança-lhe novas questões. O que é realidade? Não será a realidade um sonho?
A essa altura já nos perguntamos se essa é a garota que ele namora secretamente. A mulher de Bongwan não perde tempo com tais perguntas: acha que é e pronto. Vai até a editora e começa a surrar a outra. Só que Areum não era a namorada secreta do crítico. Ele, de fato, tinha se afastado da namorada secreta, que por sinal é ex-secretária.
Cena do filme "Nos Vemos no Paraíso"
Já estava bem para um primeiro dia num novo emprego, poderia pensar Areum. Mas a coisa não fica por aí. A antiga ex-namorada e ex-secretária de Bongwan reaparece. Temos então três mulheres e um homem. A conta não importa: nos filmes de Hong é mais ou menos assim que funciona. Aqui há um tanto mais de Ozu no grande mestre coreano: um quê de melodrama, outro tanto de comédia. Mas de um para outro o universo inteiro muda.
Se em Ozu, o homem era senhor do mundo, Hong nos coloca diante de um sujeito frágil, questionável mas nunca questionador; ainda senhor do mundo, mas de um mundo esfacelado, em que seu domínio tornou-se uma ficção.
Será então o mundo das mulheres? Pode ser. Não que Hong veja grande futuro nisso. Entre si ou em relação aos homens elas podem chorar, mas nunca em vão: partem para cima sem sutilezas. Como a namorada de Bongwan, que ao ressurgir aconselha o editor a demitir a nova secretária e ainda sugere que ele deve a entregá-la à esposa como sua amante...
Com isso, ficamos num só exemplo. Seja o mundo real ou sonhado, com Deus ou sem, todas as hipóteses propostas pelas personagens levam a um mundo nem de santos, nem de demônios. Somos mais seres levados por correntes, por acasos. Podemos chorar ou rir (também o filme: pode ser melodramático ou cômico, conforme o momento).
Nesse discreto turbilhão, Bongwan fará suas escolhas. Ficará com isso e abrirá não daquilo. A vida é um pouco decepcionante, dizia Yasujiro Ozu, o fabuloso mestre japonês. É sim, responde Hong. Não como um eco: com suas próprias e magníficas imagens.
Dos três filmes que Hong Sang-soo fez em 2017, já tínhamos visto o espetacular "Na Praia à Noite Sozinha", agora nos chega esse impecável "O Dia Depois". Falta "O Quarto de Claire": quem gosta de cinema já aguarda com ansiedade.
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